domingo, 22 de novembro de 2015

Conto - O Som

Esse conto tem duas versões, uma pocket e uma completa, a primeira que está aí. Acabei de criar uma lenda sobre um personagem de assustar. Divirta-se com a leitura.

Já estamos em plenos 1934. A seca está aí de novo, castigando a nossa gente. Por conhecer bem o tema, fui enviado novamente ao sertão de Pernambuco. Dá tristeza ver que nada mudou. Ah, mas com certeza, não vou mais lá. Não volto de forma alguma. A história que lhe contarei, ouvi há vinte anos.

Fui cobrir para o jornal Correio Diário de Santa Rita do Diamantino, norte das Minas Gerais. Na época a cidade ainda tinha gado leiteiro e cafezais, mas hoje, depois do que aconteceu, mudou até de nome. Mas isso é outra história.

Ouvi um causo de um vaqueiro velho, lá no sertão de Pernambuco, em 1914, o ano da Grande Guerra. Um povoado do interior do Município de Salgueiro, dentro do distrito de Serrinha, ficava, o que também não existe mais, o ermo e Ipucori. Uma fazenda de gado, roças de mandioca, um garimpo e um pequeno comércio, comandados por um tal de Capitão Bulhões. Esse velho, brabo, gostava de ser chamado de coronel, porque lutou em Canudos. Enfim, esse causo, aconteceu em 1903.

O vaqueiro velho disse que estava presente e tinha sido convidado para o arrasta pé onde tudo se desenrolou, “A rabeca vai canta lá no arraiá dos Seu Graça. Pa mó di que, o fio dele vai pra capitar. Vai se dotô. Seu graça achô um  riacho. Vai começá a prantá. Também vai dá água di graça. Acho que o coroné Buião não vai gostar e vai manda bala.”

Coronel Bulhões era personagem político conhecido no início da República. Tinha um afilhado político na capital. Sua filha, formosa, morava e estudava na capital. O coronel fazia questão, “Ignorantes, são esses amarelos”. Para o coronel Bulhões o povo era só gado. 

No dia em que o gado se reuniu no arraial  do Seu graça, Serra dos Cariri, mugiu bem alto. O coronel Bulhões ouviu e não gostou nem um pouco. O filho do Seu Graça  tinha uma rebeca. Agostinho tocou alto e alegrou um pouco esse povo sofrido da caatinga. Por um dia, a música da rebeca de Agostinho ia fazer o povo esquecer que, quanto mais descia a inchada, mais devia para o Coronel Bulhões. Entretanto, quem gostou mais da música da rabeca foi a filha do Coronel.

Para ser sincero, a sinhá Rebeca era mais do que uma formosura. Ela era linda de mais, a diaba. O rosto de um anjo. Mas o corpo... Nossa Senhora da Conceição, Senhor Jesus Cristo  e Padre Cícero me perdoem.

Foi festa a noite toda. O menino do Seu Graça tocava tão animado que as cordas da rabeca foram trocadas sete vezes. O menino era rápido e a rabeca pegava fogo. Que danado! As estrelas, o luar, todo o povo lá no arraial  dançando, cantando, virando cachaça e... a rabeca pegando fogo!

A filha do coronel só olhava para o Agostinho da Rabeca. A música enfeitiçou a menina. Ela só olhava para o rapaz. Todos viram o amor deles. Já pensou se tivesse casório? O coronel Bulhões ia parar de perturbar todo o povo. Pá! Um estalo. Não era da fogueira.

Seu Graça botou a mão no peito, gritou e caiu. Sangue. Outros sete caíram. Tiro na cabeça. Bala na barriga, perna, braço... era bala para todos lados. Um salseiro daqueles. O coronel Bulhões entrou no meio da festa. Aquele cavalo branco dos diabos. Cheio de jagunços. Rodopiavam com os cavalos. Era garrucha e espingarda atirando para tudo quanto é lado. Ele apontou a arma para Seu Graça, que tentava se levantar, “Tem água para ninguém. Quem quiser tem que comprar”. O povo estava numa carreira só.

Agostinho pegou a rabeca e a quebrou nas costas do Coronel Caxias. O velho se assustou, apontou a garrucha para o rapaz e atirou. “Faz isso não, senhor meu pai.”, foi um tiro, no rosto da menina. “Rebeca, te amo!”, o grito de Agostinho ressoou como uma nota desafinada da rabeca. Só o fogo da fogueira ainda fazia barulho. Os jagunços pararam. Todos pararam. Todos olhavam para o coronel.

Entre eles um caboclo cariri de terno preto abriu caminho, “Sinhô? Vamo sinbora.” Então, de repente o rapazola pegou uma lasca da rabeca, partiu para cima do coronel e enfiou no pescoço do velho. Os jagunços encheram o filho do Seu Graça de balas.

Lá no chão, o rapazola Agostinho, Coronel Caxias e a Sinhá Rebeca.

O caboclo cariri de terno preto gritou que a festa tinha que continuar, “Milagre, minha gente! Água pra todo mundo.” Tirou uma rabeca de dentro do terno preto e deu para o povo tocar, “Põe o sertão para arrasta pé. Pra animá esse sertão.” O caboclo cariri de terno preto foi embora... dançando. Levou, Agostinho e Rebeca, abraçados e deixou por lá mesmo o espírito do coronel Bulhões, perdido. Alma penada pedindo água, sem nunca ser atendido.

Até hoje, quando a seca é forte, casais andando sozinhos, ouvem a música da rabeca. Um cavalo branco montado por um velho barbudo em um terno de linho branco, dando tiros de garrucha, atropela quem se ama. O espírito do coronel Bulhões, com uma venda sangrenta é guiado por um caboclo cariri de terno preto.

Suas vítimas morrem secas iguais a uma bucha, porque o espírito do coronel Bulhões anda por aí roubando até a água do corpo dos vivos e acabando com quem se ama, como Agostinho e sinhá Rebeca.

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Serrinha, Sertão do Cariri, em Pernambuco. Em 1914, ouvi de minha avó uma história, “Se estiver namorando, não vá pelas estradas.” Coronel Bulhões descobriu que Seu Graça achou água. Iam festejar e seu filho, Agostinho da Rabeca, ia ser doutor na capital. Para desgosto do coronel, sua filha Rebeca se apaixonou pelo músico. Coronel Bulhões chegou no arrasta pé para atirar no rapaz, “Faz isso não painho, eu o amo”. O tiro foi na florzinha e Agostinho, acertou a rebeca na cabeça do coronel e o matou. A bala de um jagunço, matou o menino. Apareceu um caboclo cariri de terno preto que disse que o coronel, seria agora, alma penada. Numa cavalo branco e venda sanguinolenta, mataria qualquer casal que encontrasse à meia noite, deixando os corpos sem um pingo d’água. 

ESCAMBAU MUSICAL: "Fiddler on the green", de Demons & Wizards 21/11/201

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